terça-feira, 24 de julho de 2012

Amargo e Afável - Parte 1/4



Pela primeira vez, desde que comecei, eu havia ficado mais de um mês sem escrever qualquer coisa (sequer uma anotação vaga) – Foi um tempo difícil -, deixando os pensamentos fugirem, (e também não mexi no violão) deixando as canções escaparem. E assim ficaria, pois não encontrava mais animo para isso, não havia razão para escrever; Não havia coisa relevante, coisa não dita. Mas três fatos desencadearam pensamentos insistentes que me fizeram retornar, pois passou ser necessário dizer. Passou a ser escrever para poder ler depois; para não esquecer.
Diante da página em branco naquela noite, eu quase me esqueci dos pensamentos significativos que havia tido minutos atrás, do quê me fez correr ao caderno, mas consegui lembrar-me muito bem de tudo como ocorreu e o que me levou a ter esses pensamentos.

- Saí de casa atrasado, peguei o primeiro ônibus vazio que parou - depois de fumar meu cigarro já no ponto - e fui sentado durante os 15 minutos de viagem. Soltei com o ônibus ainda em movimento sem atentar para o mundo á volta, sem olhar rostos ou enxergar as pessoas, fixado na idéia de chegar logo ao serviço. Andei em disparado, freneticamente por uns cinco ou seis metros, dos cem metros até a porta da escola. Ouvi uma breve freada e um barulho oco e depois vidro quebrando com o impacto.
Meu rosto virou-se para o som sem que eu mandasse. Vi a figura de uma menina sendo arremessada pelo ar e voltando ao chão para ali permanecer inerte.
Tentei não olhar para aquela figura posta ao chão enquanto vultos de carros passavam velozes cortando minha visão e outros freavam e paravam bruscamente entre mim e aquele acidente – Agradeci por isso, por não poder ver e por decidi ir logo para o trabalho, pois disseram mais tarde que seu rosto estava desfigurado e que havia muito sangue, que ela fatalmente devia ter morrido (e só a descrição da coisa e essa última informação já era o suficiente para me deixar abalado e fazer meus nervos enrijecerem).
Tentei não pensar nessas coisas, esquecer o ocorrido, e por vezes as crianças conseguem fazer me esquecer de tudo, de todas as minhas tristezas, amarguras, frustrações; As crianças conseguem fazer me esquecer de tudo o que dói – nas crianças eu sinto possível poder construir um mundo novo, é pelas crianças que tenho a esperança de que alguma coisa boa aconteça -, mas elas não podiam competir contra os adultos e o leva e traz de notícias “quentes” e, então, o meu dia foi tomado por uma tristeza branda e abatida de ver que num piscar de olhos uma vida, seus desejos, sonhos e tudo o mais, não estavam mais ali; pela nítida e impressionante sensação de impotência e fragilidade que cerca a vida humana – Mas não por isso, eu estava triste. Lembrei-me de meu tio, falando e rindo ao telefone com a esposa do meu primo, falando da neta, e de repente... Um tiro, um único e pequeno pedaço de metal fundido o tirou de nós; Sem deixá-lo se despedir ou terminar a frase que ia dizendo, sem aviso... E minha sobrinha que em um dia estava em meu colo, com febre, apenas febre, e no outro eu nunca mais poderia pega-la no colo ou sentir aquele cheiro doce ou sentir o leve daquelas mãozinhas.
Pensei naquela menina por todo o dia. Dezessete anos. Estava pensativo por fora, desligado das coisas, mas estava arrasado por dentro como se chorando inconsolável, e eu não entendia por que me abatia tanto pensar naquela menina que eu não conhecia.
Que sonhos tinha? Quem ela amava? Quem a amava? E senti urgência em saber alguma coisa até então muito subjetiva para eu ter clareza do que seria.
Disseram que falava ao telefone, e falaram com o ar acusador, típico das pessoas que não se importam: “Mas também ela devia estar assim” – e andou pelo pátio fazendo a mímica da menina andando displicente falando ao telefone ao atravessar a rua, dando a idéia que de alguma forma ela mereceu ser atropelada, que tinha culpa naquilo - E essa é, também, das coisas que me deixavam mais incomodado: As indagações, as acusações sem qualquer prova, as conjecturas de quem nem ao menos entende a dimensão do que fala, a disponibilidade e facilidade com que alguns têm e encontram para apontar. A falta de tempo e a indisponibilidade que há para amar o próximo ou ter compaixão, para sonhar seus sonhos e ser, no mínimo, solidário ou impassível no pior dos casos – Há castigo pior que pagar com a vida por um erro tão bobo? É realmente necessário ainda difamar alguém tão severamente castigado?
Talvez sofrer grandes perdas nos ensine, talvez seja necessário – Como o que é preciso ver para crer, como o que é preciso sentir para entender. Mas... Qualquer um que tenha sofrido uma perda significativa entende: Uma perda nunca ensina o bastante pelo o que se perde, o ensinamento nunca irá justificar a perda, nunca irá justificar perder irrefutavelmente. Nunca é tão valioso pela dor e tristeza irremediável.

(Continua)

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